sábado, 22 de dezembro de 2007

PESADELOS DA SECA ÀS MARGENS DO SÃO FRANCISCO




Micael Benaic


O texto postado por Micael Benaic, estudante de Jornalismo e Multimeios da UNEB, em Juazeiro (BA), mostra, no fundo, o porquê do protesto do bispo de Barra, dom Luiz Cappio. A reportagem, escrita em agosto para o jornal-laboratório do curso da UNEB, é mais atual que nunca, ao retratar a irrealidade da transposição.


Na próxima postagem, vamos destrinchar o porquê da irrealidade da transposição, denominada pelo Ministério da Integração Nacional de “integração de bacias”. Realmente, seria integração de bacias se pudesse haver navegação entre os diversos rios do semi-árido e se eles pudessem se comunicar, não por dutos ou canos, com o São Francisco. O que não é o caso.


O agricultor José da Mota, 62 anos, perdeu, nos últimos meses, toda plantação de maracujá. Ironicamente a terra esturricada da sua propriedade faz divisa com o progresso. Da janela de sua casa, no Projeto Maniçoba, a 35 quilômetros do município de Juazeiro, no norte do estado da Bahia, e à beira do rio São Francisco, ele avista coqueiros e mangueiras carregadas de frutos. É a imagem do paraíso, o Éden do Sertão. As terras verdejantes pertencem ao vizinho de cerca, um baiano que deu certo na vida. “Os dias vão passando e eu continuo esperando pela chuva. Um dia, se Deus quiser, ela chega”, diz o sertanejo, diante da visível contradição.

A quilômetros dali, em um povoado conhecido como Posto do Umbuzeiro, Cecília Machado se senta para falar sobre a estiagem que assola o Vale do São Francisco há um ano. Acomoda-se próximo a porta do casebre de taipa para desfiar lembranças. Tem o rosto enrugado, as mãos calejadas. Histórias não faltam para essa baiana de 76 anos e mãe de quatro filhos. Ela sabe o significado de não ter uma gota d’água para suprir as necessidades de casa. Mesmo assim, vai em frente. Enquanto algumas empresas agrícolas se entregam ao luxo dos modernos sistemas de irrigação que garantem aos produtores cultivar mangas do tipo de exportação, as vítimas da seca vivem a incerteza da sobrevivência.

“É difícil viver sem água, mas agora que consegui construir minha cisterna, a vida melhorou. Hoje, mesmo com sacrifício, graças a Deus tenho pelo menos água pra beber”, conta dona Cecília. Mesmo sofrendo com esse problema, ela não pensa em sair de lá. Sua vontade é permanecer em sua terra até os últimos dias de sua vida. “Daqui, só saio para casa-branca”, diz a aposentada, referindo-se ao cemitério que fica logo atrás de sua casa.

Seguindo pela mesma estrada, apenas cinco casas, uma escola e um bar compõem a comunidade de Jurema Vermelha. É lá que vive Josefa da Silva, 47 anos, dona de casa e mãe de sete filhos. O chiado do rádio impõe a trilha sonora enquanto Josefa conta como faz para lidar com a situação da escassez de água. Segundo ela, a cacimba, muitas vezes, é a salvadora do sertanejo que lava roupa e louça, toma banho e cozinha, quando as caixas das cisternas estão secas e não há dinheiro para comprar água nos carros-pipas. O suor escorre em sua testa, enquanto o rio São Francisco corre ali perto, imponente. Mas a água do Velho Chico não chega a sua propriedade. Quando a cacimba está seca, a rotina é impiedosa. Na companhia de um sol causticante, dona Josefa calça os chinelos de dedo, tange o gado para o poço mais próximo e caminha três quilômetros até o rio em busca de água.

À beira da gigantesca represa de Sobradinho, o sertão continua a exibir seus contrastes. A seis quilômetros do lago formado pelo represamento do rio São Francisco, onde a população local se refresca e os mais ricos andam de lancha, Francisca Almeida, 40 anos, junto com os seis filhos e o marido, caminha duas horas por dia com uma lata sobre a cabeça para pegar água na cidade. Não tem dinheiro para chamar um dos carros-pipas tão presentes na paisagem sertaneja. Em geral, os que sofrem com a seca reclamam do volume reduzido e da qualidade da água despejada pelos caminhões: é salobra, quase intragável. “Vou esperar chover, se não acontecer isso logo, vou ter que procurar outro lugar pra viver”, afirma Francisca.

Os homens e as mulheres que permanecem à espera das águas perdidas têm um perfil em cada confim do Vale do São Francisco. Mas a identificação por necessidades extremas aproxima os que sobrevivem distantes uns dos outros, separados por fronteiras que reservam a todos, a mesma relação com o mundo. O mundo das águas que correm para longe de suas esperanças, o mundo das vidas secas como a de José, Cecília, Josefa e Francisca que desenham, fielmente, as singularidades de um Vale com contrastes sem igual.

Fotos: Micael Benaic (mulher tirando água num barreiro) e Juliana Pires (barcos ancorados junto à ponte Presidente Dutra, entre Petrolina e Juazeiro-BA)

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