segunda-feira, 22 de setembro de 2008

NÃO POR ACASO!


Em 2007, o sistema prisional brasileiro contava com 262.690 vagas, o que parece um número grande, mas não o é, principalmente quando evidenciamos que tínhamos 437.596 presos. Não precisa nenhuma reflexão mais elaborada para percebermos que tal realidade impõe a necessidade de uma pessoa ficar quase que em cima da outra, ou ainda que desafie qualquer lei da física que indique que dois corpos não ocupam o mesmo lugar.

Certamente, se, ao invés de pessoas, tivéssemos animais nos presídios brasileiros, vivendo em condições semelhantes, o IBAMA já teria realizado alguma intervenção brusca no sentido de impedir a continuidade de tantas atrocidades.

Após cada rebelião, evidenciamos discursos dos representantes estatais que tentam conduzir ao entendimento de que algo radical será feito no sentido de combater a chamada superlotação do sistema prisional. Construção de novas unidades, realização de mutirão para regularizar a situação jurídica de cada pessoa presa (considerando que várias delas continuam presas indevidamente), entre tantas outras ações anunciadas. Até aí tudo bem, pois nada mais pertinente do que tentar intervir nos pontos considerados cruciais e, sem dúvida, a superlotação é um deles, inclusive por contribuir significativamente no desencadeamento de outros problemas.

Mas por que nada, ou quase nada do que é anunciado, é feito? Poderíamos simplificar a resposta alegando que o grande obstáculo se situa na escassez de recurso financeiro ou mesmo na falta de “vontade política” de determinados governantes para implementar as mudanças necessárias, mas trabalho com a hipótese de que esta omissão está relacionada à forma que a sociedade percebe/encara uma pessoa que está presa. Algo relacionado à resposta que encontramos na sociedade quando perguntamos: quem é o preso? Que direitos tem uma pessoa presa? Qual a responsabilidade do Estado/da sociedade com as pessoas que transgridem as leis?

No Brasil, as pessoas que cometem certos tipos de crimes, em geral, são vistas como uma “banda podre” da sociedade, como o “mal do mundo”, e, assim sendo, há uma clara tentativa de desumanizar os tais “desviantes”, de diferenciar o criminoso da grande vítima, o “bom” do “mau”, sendo importante reiterar que, no Brasil, o “mau” quase que via de regra é vinculado ao pobre e/ou ao negro.

Dessa forma, uma parcela da sociedade pode continuar dormindo tranqüila, com a sensação de fazer parte da “banda boa” do país, enquanto aqueles classificados como “maus”, como criminosos, compõem a parte “podre” da sociedade brasileira. É como se fossem água e azeite, que não se misturam.

A partir deste entendimento, temos (implicitamente) que toda e qualquer ação violenta contra a tal “banda podre” é legítima, e, portanto, dentro desta lógica, não percebemos na sociedade nenhum movimento no sentido de questionar a forma de tratamento proporcionado aos presos, afinal, eles fazem parte do “lixo” humano que a sociedade teima em creditar todas as desgraças do país. E o que fazemos com o lixo? Jogamos fora, desprezamos, queremos a maior distância possível.

Então, maus-tratos, negação de acesso à justiça, condições de higiene abomináveis, ausência de cuidados relacionados à saúde (inclusive do ponto de vista psicológico), são tidos pela sociedade como algo merecido pelos denominados criminosos que estão nos presídios espalhados pelo Brasil.

Esta concepção, na verdade, representa uma tentativa de desresponsabilização da sociedade com o contexto de criminalidade violenta que evidenciamos nos dias atuais. É como se tal contexto não tivesse nenhuma relação com o funcionamento da nossa sociedade. Até parece que estamos diante de uma sociedade extremamente harmônica, justa, que tem sua “paz” colocada em xeque pelos chamados criminosos, que se enquadrariam assim no rol das exceções, quase que como trovões em dia de céu azul.

Acredito que as chamadas vítimas também têm responsabilidades no processo de construção do atual quadro de criminalidade violenta, sobretudo por considerar que o modo de funcionamento de uma sociedade exerce influência direta na forma que cada ser humano irá manifestar a sua agressividade “contra” esta mesma sociedade, e, assim sendo, não seria exagerado afirmar que estamos colhendo o que plantamos.

Esse paradoxo nos obriga a pensar no peso da violência que se origina no espaço sociocultural, a violência invisível, que se refere à destruição do sentimento de pertença de um indivíduo à determinada comunidade/sociedade. A violência provocada pela exclusão, pelo abuso das políticas econômicas, pelo seqüestro da subjetividade dos cidadãos, pela desigualdade social. Trata-se da violência de submeter grupos de uma sociedade à falta de moradia, à miséria, à fome, à ausência de trabalho.

O tráfico de drogas e a inserção em grupos criminosos são, não raras vezes, os caminhos buscados por muitos jovens brasileiros para saírem do labirinto em que se encontram, possibilitando algo que certamente não vislumbrariam conseguir, nem em sonho, por vias legais. É o crime possibilitando a vivência do sentimento de ser reconhecido de alguma forma, de ser respeitado, de ter algo, quase que como uma mágica.

Dito de outra forma, o envolvimento no crime tem, de certo modo, matado a “fome” de alguns jovens que estão famintos de reconhecimento, de sentimento de pertença, de proteção familiar, e, por vezes, encontram tais sentimentos quando se envolvem com grupos ou ações criminosas, embora tal inserção também traga (quase sempre) sérias repercussões negativas às suas vidas, sobretudo se considerarmos o “código de ética” vigente entre os grupos criminosos.

Situando o crime/criminoso dessa forma, se abre espaço para entendermos que a sociedade, por mais difícil que seja admitir, também é (ou deveria ser) responsável por pessoas que estão inseridas no sistema carcerário. Não apenas por solidariedade ou benevolência, mas, sobretudo, por ser na sociedade, no seu modo de funcionamento, que se forjam os denominados criminosos, e, assim sendo, nós poderíamos começar a pensar que teremos que aprender a lidar com eles de forma distinta da que hoje fazemos.

É importante alertar que não tento aqui agregar às pessoas que cometem crimes a imagem de meras vítimas inocentes, mas entendo como inadmissível, em pleno século XXI, não identificarmos formas outras de nos relacionarmos com as pessoas que cometem crimes, pois, para mim, tal fato (cometer crimes) não retira delas nenhuma característica de sua condição humana, mas, ao contrário, reafirma a sua presença, na medida em que esta felizmente (ou infelizmente) tem a manifestação da agressividade como uma das suas tantas possibilidades.

Quando falamos que não temos pena de morte no Brasil, fico me perguntando de que morte estamos falando. Talvez parte das pessoas que estão no sistema carcerário brasileiro conheça um “modelo” de pena de morte diferente do tradicional, mas não menos trágico, pois impõe uma condição de morte em vida. Morte de perspectivas, morte de possibilidades de construir um caminho diferente, morte da possibilidade de sonhar com uma vida digna (apesar do crime cometido), enfim, morte de grande parte daquilo que nos faz humano.

Este texto foi postado por Marcelo Agra, psicólogo com especialização em Psicologia Clínica e membro da Coordenação Colegiada do GAJOP.

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